Repressões contra a esquerda russa: o anarquista Azat Miftakhov

Author

Aleksandr Listratov

Date
January 30, 2024

A prisão do anarquista é uma continuação da campanha repressiva contra a esquerda russa e o estabelecimento final de uma ditadura tendo como pano de fundo a guerra na Ucrânia

“Vivemos numa era desprovida de moralidade, ou, se preferir, em que a moralidade existe, mas é corrompida ou de natureza privada. Nem sempre foi assim, mas hoje nos deparamos com isso. Nem sempre será assim, mas esta é exatamente a situação atual.”

Jean Paul Sartre

O anarquista russo Azat Miftakhov está celebrando o ano novo de 2024 na prisão. Este é o sexto ano da sua detenção sob o artigo “vandalismo”; em setembro de 2023, foi adicionado um segundo artigo penal – “justificação de terrorismo”. Tudo isto é uma continuação da campanha repressiva contra a esquerda russa e o estabelecimento final de uma ditadura tendo como pano de fundo a guerra na Ucrânia.

QUEM É AZAT E POR QUAIS RAZÕES ELE ESTÁ NA PRISÃO

Na Rússia, as repressões ocorrem há anos contra representantes de várias organizações políticas de esquerda e, em geral, contra pessoas que defendem um ponto de vista diferente do “de Putin”. Os jovens de esquerda russos estão habituados ao fato de serem inimigos das autoridades políticas e de sua corrente mainstream conservadora, além de também serem contra os representantes da oposição liberal pró-Ocidente. As autoridades estão empenhadas na repressão, e a oposição liberal tenta “ignorar” os presos políticos que não são seus aliados.

Azat Miftakhov é um matemático e anarquista russo de trinta anos de origem tártara. Formado com alto desempenho pela Faculdade de Mecânica e Matemática da Universidade Estadual de Moscou (MGU), ele estudou ciências, participou de ações políticas e de campanhas anarquistas contra empregadores inescrupulosos e invasores corporativos que expulsavam residentes de apartamentos e dormitórios. Vencedor da Olimpíada Russa de Matemática, no momento de sua prisão ele estava prestes a defender sua tese de doutorado em matemática.

Na noite de 30 de janeiro de 2018,  pessoas desconhecidas quebraram a janela da sede distrital de Moscou do partido Rússia Unida, pró-Putin, jogando uma bomba de fumaça no seu interior. Ninguém ficou ferido e os investigadores estimaram os danos ao escritório em várias dezenas de milhares de rublos. Inicialmente, foi aberto um processo criminal sob a alegação de “Vandalismo” (artigo 214 do Código Penal da Federação Russa).

Um ano depois, em fevereiro de 2019,  Azat Miftakhov foi acusado pelo ocorrido.  Ele negou seu envolvimento sobre a janela quebrada e mesmo assim foi detido por um motivo completamente diferente – suspeito de fabricar um artefato explosivo, mas nenhuma acusação foi apresentada neste caso. Mesmo assim, Miftakhov disse que a polícia o espancou e o torturou, exigindo uma confissão. Segundo sua advogada, Svetlana Sidorkina, ele foi espancado no rosto, além disso, ficou com a marca de uma chave de fenda no peito. A comissão de monitoramento público do FSIN (Serviço Penitenciário Federal da Rússia) confirmou vestígios de tortura no corpo, no entanto, a Comissão de Investigação não abriu processo sobre o uso de violência.

Como resultado, o caso da janela quebrada do escritório da Rússia Unida foi reclassificado sob o artigo “Vandalismo” (artigo 213 do Código Penal da Federação Russa), e Miftakhov foi enviado para um centro de detenção provisória. Esse foi um artigo mais leve do que o originalmente pretendido. Ele foi acusado de supostamente lançar uma bomba de fumaça e durante a “ação”, ficou por perto e observou a situação. Como principal prova contra Miftakhov, a promotoria apresentou o depoimento de uma testemunha secreta que reconheceu o matemático pelo “formato expressivo de suas sobrancelhas”.

Parentes do jovem cientista acreditavam que os policiais começaram a persegui-lo por causa de suas crenças anarquistas. Anteriormente, vários outros anarquistas foram presos no mesmo caso, que a investigação considera envolvidos nas atividades da organização “Autodefesa do Povo” – Svyatoslav Rechkalov, Andrei Eykin, Daniil Galkin e outros. Apenas Rechkalov, sob pressão, admitiu ser membro desta organização. Alguns deles também relataram tortura. Muitos dos ativistas, após a violência, foram para o exílio, enquanto Miftakhov permaneceu na Rússia, e é ele quem o FSB está tentando apresentar como o “vice-líder da organização “Autodefesa do Povo” , apesar de Miftakhov não ser membro.

Azat passou dois anos num centro de prisão preventiva antes de ser condenado em janeiro de 2021: seis anos numa colônia de detenção de  regime geral. Em abril de 2022, o tribunal reduziu a pena de Miftakhov para cinco anos e nove meses. Enquanto Miftakhov cumpria sua pena, ele foi enviado várias vezes para uma cela de castigo, uma das celas de confinamento solitário mais terríveis de uma prisão russa. O matemático deveria ter sido libertado em 4 de setembro de 2023, mas foi novamente detido na saída da colônia, após vários minutos de comunicação com sua família.

NOVA ACUSAÇÃO CONTRA AZAT

Um novo processo criminal contra Miftakhov foi aberto em 7 de agosto. Ele está sendo acusado de “justificar o terrorismo” e de “propaganda de terrorismo entre condenados”. Logo após o início do caso, Rosfinmonitoring (Serviço Federal de Monitoramento Financeiro da Federação Russa)  adicionou Azat à lista de “terroristas e extremistas”. Já em 29 de agosto, oficiais do FSB foram à colônia onde Miftakhov se encontra para interrogá-lo sobre um novo caso criminal. O matemático recusou-se a participar de ações investigativas sem seu advogado.

Miftakhov passou a noite após sua prisão na saída da colônia em um centro de detenção temporária e, em 5 de setembro, o Tribunal Distrital de Pervomaisky de Kirov o prendeu por dois meses. O investigador Ponomarev justificou o pedido de prisão de Miftakhov pelo fato de o matemático, “ser um participante ativo da organização terrorista Autodefesa do Povo, e ter cometido um crime doloso, nomeadamente, ter feito propaganda de terrorismo entre os condenados na sala nº. 2 em IK-17.” Segundo ele, isso foi comprovado por exame linguístico. Miftakhov não admitiu culpa.

As testemunhas no caso do matemático foram os condenados Gadzhimuratov, Trushkov e uma testemunha secreta sob o pseudônimo de Naumov, que cumpriu pena na mesma colônia que Miftakhov. Em particular, o seu depoimento afirma que o matemático iria deixar o país após sair da colônia. Segundo um dos presos que estava na cela enquanto assistia ao noticiário, Miftakhov teria afirmado que “não queria participar da exibição” e que “os oficiais do FSB deveriam ser explodidos”. A testemunha acrescentou ainda que enquanto assistia às notícias sobre a guerra, Miftakhov disse que “vai se vingar” da morte de um amigo que morreu lutando ao lado da Ucrânia. Além disso, o condenado Gadzhimuratov explicou que Azat “apoia a ideologia do anarquismo radical”. Todas as forças progressistas que apoiam Azat têm todos os motivos para acreditar que estes “depoimentos” de alegadas testemunhas são forjados e impostos a ele sob pena de tortura e represálias, por um lado, e por outro, representa uma punição a fim de evitar a saída da prisão antes do prazo. Como todos já devem saber: esta é uma prática comum nas prisões russas, especialmente se for politicamente benéfica para a investigação.

Azat foi preso até 3 de novembro de 2023 com posterior prorrogação até janeiro de 2024. Uma nova acusação será considerada num futuro próximo; a advogada Svetlana Sidorkina acredita que o seu caso provavelmente será levado ao tribunal de Samara ou Yekaterinburg: “O artigo pelo qual ele é acusado refere-se à jurisdição dos tribunais militares e, numa base territorial, trata-se da jurisdição do Tribunal Militar Distrital Central.” A defesa recorrerá da medida preventiva escolhida na forma de detenção em instância superior.

QUEM APOIA AZAT?

A campanha em defesa de Miftakhov está sendo apoiada desde o início pelo grupo Iniciativa da Universidade Estatal de Moscou, o cientista de esquerda russo e criador da revista política “Rabkor” Boris Kagarlitsky,  movimentos políticos russos como a União Marxista, o Movimento Socialista Russo, a revista política comunista “Boletim da Tempestade”, a revista estudantil DOXA , bem como muitos matemáticos russos.

A perseguição e o julgamento de Miftakhov foram condenados pela Human Rights Watch, pela London Mathematical Society, pela comunidade matemática da França e pela União Matemática Internacional. Foram os matemáticos Michael Harris, Ahmed Abbes, Michel Broué que inicialmente criaram o grupo de apoio internacional “O Comitê de Matemáticos Azat Miftakhov”. Posteriormente, o número de intelectuais e políticos que se opuseram à perseguição de Miftakhov nos últimos anos inclui Slavoj Zizek, Noam Chomsky, Jean-Luc Mélenchon, Sophia Chikirou, o falecido David Graeber e muitos outros.

No Brasil, a comunidade matemática também protestou contra a prisão de Azat Miftakhov e uma petição para sua libertação foi assinada por personalidades como Carlos Schmidt, professor da Universidade do Rio Grande do Sul e um dos marxistas mais reconhecidos do Brasil, o historiador Vavy Pacheco Borges, o sociólogo Michael Löwy, a historiadora Silvia Capanema, o co-criador da CUT, Júlio Turra, os jornalistas Gisele Oliveira, Mario Pinheiro e Vânia Rodrigues, além de muitos outros.

Na Rússia, existe um grupo de apoio chamado FreeAzat; a sua filial internacional “Solidarité FreeAzat” está em campanha internacional recolhendo cartas de apoio a Miftakhov. Você pode escrever uma carta para o Azat Mifttakhov usando o formulário no link.

REPRESSÃO CONTRA O MOVIMENTO DE ESQUERDA NA RÚSSIA

O caso de Azat Miftakhov é um dos muitos processos judiciais em curso contra jovens da oposição, de esquerda e antifascistas na Federação Russa.

Jovens antifascistas e comunistas da cidade de Tyumen foram torturados para obter testemunhos: foram espancados, estrangulados com um saco, torturados com choques elétricos e ameaçados de estupro com uma vassoura. Eles foram acusados de criar uma associação terrorista, preparar um ataque terrorista, com a intenção de explodir delegacias militares e policiais, bem como de sabotagem nas ferrovias ao longo das quais trens com equipamento militar russo são entregues à Ucrânia. Eles enfrentam entre quinze e trinta anos de prisão e há também militantes de esquerda que foram condenados à prisão perpétua.

Adolescentes da cidade de Kansk foram detidos em 2020 por postarem panfletos em apoio a Miftakhov. Eles foram acusados de preparar ataques terroristas. Nikita Uvarov, de dezesseis anos, foi condenado a cinco anos em uma instituição para jovens delinquentes.

Em 2020, com base em confissões obtidas pelas forças de segurança através de espancamentos e uso de armas paralisantes, o tribunal condenou dez antifascistas de Penza e São Petersburgo a penas que variam entre três anos e meio e dezoito anos de prisão. As autoridades de segurança acreditam que a Rede estava a planejar ataques terroristas nas vésperas das eleições presidenciais russas e durante a Copa do Mundo FIFA de 2018, a fim de desestabilizar o país e levar a cabo um golpe armado. O caso da “Rede” tornou-se particularmente ressonante e pessoas de todo o mundo defenderam a libertação dos anarquistas condenados.

A repressão baseada no alegado terrorismo atinge não apenas jovens anarquistas e antifascistas, mas também comunistas. Dmitry Chuvilin, deputado da Assembleia Estatal de Bashkortostan e antigo membro do Partido Comunista da Federação Russa, foi acusado juntamente com os seus camaradas de ser membro de uma organização “terrorista” simplesmente por participar de um grupo de estudos marxista. Na verdade, as autoridades locais reconheceram a sua participação ativa em protestos ambientais.

Kirill Ukraintsev, líder do sindicato dos Correios, passou um ano na prisão. Uma das acusações foi uma postagem nas redes sociais com um apelo para comparecer ao julgamento de Miftakhov. Isto foi qualificado como “organizar um comício perto do tribunal”.

Em 25 de julho, Boris Kagarlitsky, um sociólogo e teórico marxista mundialmente famoso, foi preso em Moscou. Acusado de “justificar o terrorismo” por se manifestar contra a agressão de Putin na Ucrânia e pode pegar até sete anos de prisão. No momento, Boris está em liberdade, mas o Ministério Público já interpôs recurso da sentença, segundo a qual Boris teve que pagar multa, mas foi libertado. A promotoria exige novamente 5 anos de prisão para Kagarlitsky. Essa sentença “leniente” foi possível graças ao apoio e à solidariedade internacionais, inclusive com participação de camaradas do Brasil.

A Rússia está novamente, como tem estado nos últimos cem anos, nas mãos dos elementos mais conservadores da classe burguesa dominante. Há repressão contra a esquerda de todos os matizes em todo o país. Vladimir Lênin tornou-se um “terrorista e extremista” porque se opôs às guerras imperialistas, à expansão territorial e ao chauvinismo da Grande Rússia. Vladimir Putin justifica a expansão territorial com base em ideias fascistas de expansão do espaço vital e recria o império de Alexandre III, que deu a ordem para executar o irmão de Lenin, Alexander Ulyanov. Após este acontecimento Vladimir Ulyanov disse a sua famosa frase, “iremos por um caminho diferente”, e escolheu o caminho de um revolucionário e libertador.

Azat Miftakhov é um símbolo da repressão contra a esquerda e o exemplo mais marcante do desejo das forças de segurança russas e da classe dominante de destruir o legado da Revolução Russa. Em 2000-2010, os anarquistas e antifascistas tornaram-se uma força proeminente nas ruas das cidades russas e sempre criticaram as autoridades russas pelas suas políticas imperialistas. Nos chama a atenção, o fato que, exatamente às vésperas das eleições presidenciais de 2018 e da Copa do Mundo, todas as organizações anarquistas tenham começado a ser derrotadas. Posteriormente, isto também afetou os círculos e movimentos socialistas e comunistas que ganharam força, especialmente depois de 24 de Fevereiro de 2022, quando muitos anarquistas, comunistas e socialistas assumiram posições anti-guerra. Afinal de contas, eles serão sempre o principal inimigo das autoridades russas, um inimigo que lhes lembra que todo o seu poder e propriedade repousam na apropriação criminosa das conquistas do povo soviético em 1991.

Neste contexto, nós, da esquerda russa, temos uma solidariedade internacional muito importante com todos os que lutam contra a repressão contra a dissidência, a expansão imperialista e a exploração do homem pelo homem. Porque somente através de esforços conjuntos podemos alcançar a transformação radical, porque nada é mais importante na vida do que a luta pela libertação da humanidade.